segunda-feira, 11 de março de 2013

A CARNE E A PEDRA - RICHARD SENNET


                                     
                                            http://uviccongress2013.ca/program/speakers/

    Richard Sennett nasceu em Chicago no dia 1 de janeiro de 1943. É um sociólogo e historiador norte-americano, professor da London School of Economics, do Massachusetts Institute of Technology e da New York University. É também romancista e músico.

    Levado à sociologia por Hannah Arendt, Sennett também reconhece a influência de Michel Foucault sobre seu trabalho. A princípio interessado na vida dos trabalhadores em meio urbano, aborda questões ligadas à arquitetura.



      Posteriormente amplia seu campo de estudos, analisando a corrosão do caráter induzida pela instabilidade profissional sob o capitalismo flexível. Baseia-se em relatos de vida, notadamente de trabalhadores condenados à mobilidade, que não lhes possibilita o estabelecimento de vínculos duráveis. Através do estudo da cidade moderna, interessa-se por questões ligadas à sociabilidade e ao trabalho, e particularmente, pela figura do exilado, cuja origem e formação não podem ser compreendidas pelos outros.


    Seus principais interesses estão na área de desenvolvimento social e arquitetural de cidades, mudanças no mundo do trabalho e sociologia da cultura.

          CARNE E PEDRA - O CORPO E A CIDADE NA CIVILIZAÇÃO OCIDENTA

    Sennet estuda algumas cidades em momentos específicos de sua evolução, que tenham marcado as experiências corporais e os espaços em que as pessoas viviam ou transitavam.



O TEMPO NO CORPO
Os primeiros cristãos em Roma

    Uma das passagens mais dramáticas da historia da igreja,teve origem na critica feita por um cristão contra o mais personalista dos projetos arquitetônicos,que era a construção de Antinópolis.
    Antínoo era amigo do imperador Adriano,acreditava-se que Antínoo teria se suicidado para salvar a vida do imperador que se encontrava enfermo.Naquela época acreditava que uma pessoa através do suicídio poderia transferir sua força vital  para um ente querido,por essa atitude Antínoo ele foi considerado um Deus para os romanos.No entanto,Orígenes contestou esta “deusificação”,pois para ele Deus era considerado uma pessoa sagrada,livre das leviandades humanas,dotado de poderes sobrenaturais,vida eterna e jamais poderia ser comparado com uma pessoa humana.Sendo assim Orígenes demoliu os poderes mágicos de Antínoo  e declarou que a fé em Deus não poderia ser decretada pelo estado,os cristãos não tinham a quem dever qualquer obediência terrena.Quebrando assim o elo política e religião e tornando os templos e monumentos invólucros e vazios.A divisão entre política e fé manifestou-se a partir de uma concepção temporal que marcou a crença cristã inicial.
      
http://www.historia.templodeapolo.net/civ.asp?civ=Civiliza%C3%A7%C3%A3o%20Romana#topo
     
    A adoção dessa nova crença,fez com que os novos cristão mudassem seu modo de pensar,para eles agora o corpo não pertencia mais as cidades e eles estavam livres dessa servidão.Por isso eles passaram a vagar,desenraizados e sem descanso,nômades.Mesmo que eles não saíssem pelo mundo a fora,deveria deixar  inteiramente de lado o apego ao lugar onde se vive.Chegava ao fim a lealdade aos espaços físicos.
    Além disso o novo cristão deveria se desapegar de tudo que se considerava humano,ou seja,prazeres,deveria fazer renuncias corporais árduas e não naturais,deveriam ir alem dos limites do prazer e da dor,ate não sentir nada,perdendo as sensações,transcendendo ao desejo.
    Passava-se também  seguir a doutrina de igualdade entre os seres humanos,as imagens e formas visuais deixavam de ser importantes.
     Tornava-se então necessário criar lugares em que os cristãos pudessem fazer sua peregrinação.Os cultos se iniciaram em pequenos centros do comercio do império,logo depois eles passaram a se encontrar em recintos fechados,chamados de A Casa Cristã.Depois os fies transferiram o culto para outras edificações ,mas todas elas sendo um espaço domestico,entre quatro paredes,como modo de se proteger contra as agressões do estado que proibia a pratica publica da religião.
     Os cultos se iniciavam sempre na sala de jantar.Na qual dividia-se a refeição,conversavam e rezavam,sem grandes formalidades,tratando sempre todos os cristãos por igual.
                                    
AS PRIMEIRAS IGREJAS

    Com a adesão do Cristianismo no império de Constantino, estabeleceu-se uma forma de governo na igreja que prevalece até hoje: o bispo é o “pastor” que guia os negócios cristãos da cidade. Assim, à medida que a religião “crescia”, seu patrimônio aumentava e agora estava diretamente relacionada ao poder.
    Com essa expansão, a imagem de Cristo, antes o Deus dos humildes, foi alterada; a igreja passou a pertencer ao reino. Constantino, o imperador, tornou-se vigário de Deus na terra, e Deus passou, cada vez mais a ser visto como “imperador do céu”, cuja imponência era refletida nos prédios e construções.
                                               A BASÍLICA DE LATRÃO 


  “...nasceram no terreno que fazia parte daquilo que estava à livre disposição do rei...”

    A fé possuía uma hierarquia e isso era refletido no templo construído, havia a segregação do espaço. Mas, em contrapartida a esse esplendor físico, os fiéis tentaram preservar o compromisso com a fé voltando- se para o espaço da experiência religiosa individual. O martirium era um lugar especial para moldar a luz.
                                    MARTIRIUM DE SANTA CONSTANÇA
    Trata- se de um espaço destinado `contemplação, à reflexão individual sobre as vidas dos que sofrem pela fé.
                


    A basílica e o martirium representavam as duas faces do cristianismo: o Cristo Rei e o Cristo Salvador do martirizado e do fraco. Expunham também a dificuldade de acomodação do cristianismo aos espaços em que os cristãos viviam, Roma particularmente. A conversão da cidade ocorreu quando o império ainda estava em declínio. Os pagãos estabeleceram entre esses fatos uma relação de causa e efeito.
    Quando a influência de religião cresceu, quebrou-se a harmonia entre sua austeridade inicial e os espaços que ela ocupou. O poder exigia um ambiente apropriado. Nesse sentido, o martirium representou para a fé cristã uma redenção. Porque somente em alguns lugares, bem construídos, com arte, no sentido da conversão seria perceptível, neles, o cristão renunciava à carne, mas resgatava o valor da pedra.
    Para o crítico Friedrich Nietzche, o desejo de transcender à carne e à pedra era mera tática de poder. Baseado nisso, mostrou o cristianismo como uma parábola onde figuram gaviões e cordeiros; respectivamente, romanos e cristãos. Tudo resumindo-se em uma “caça à presa” na qual o cordeiro nãopoderia livrar-se do gavião, pois a alma não pode renegar a necessidade de um lugar no mundo.

CAPÍTULO V
 COMUNIDADE
“STADT LUFT MACHT FREI”

     Numa época de miséria, a Idade Média, a maior parte da população vivia no campo, e os grandes castelos significavam segurança. Igualmente murados e com reservas de comidas, roupas e mercadorias de luxo, asseguradas pela atividade mercantil, os centros urbanos medievais começaram a se desenvolver.
    Na Paris medieval, a Catedral de Notre-Dame ergueu-se testemunhando o poder do cristianismo sobre o novo centro cultural. Embora o rei da França e o bispo de Paris tenham brilhado no evento, representando o Estado e a Igreja, a população celebrou muito mais o triunfo do trabalho manual, festejando entalhadores, vidraceiros, tecelões e marceneiros, que haviam participado da obra, bem como os banqueiros, que a financiaram. Uma terceira força de influência – a economia - surgia.
    Na realidade, pode-se dizer que a catedral foi o ponto culminante da cadeia de eventos que se iniciaria nos mercados de peixes e grãos, às margens do Sena. Graças ao crescimento dos negócios, massas de aprendizes haviam migrado para Paris, de toda Europa.
                          

“Sob influência do comércio, as antigas cidades romanas ganharam novo alento, crescendo demograficamente; ; em outros casos, grupos mercantis estabeleceram-se em torno de fortalezas, ao longo da costa, das margens do rios, na confluência de rotas de comunicação. Assim é que se construíram os mercados, cada qual exercendo atração proporcional a sua importância, nas imediações ou mais distantes.”  (Henri Pirenne)
    Assim como as aldeias e vilas medievais reviveram sob o abrigo do cristianismo, as pedras das igrejas e catedrais expressavam a afeição passional e eterna dos cristãos às cidades em que viviam, e quando eles careciam da comunidade, ou ainda, o modo como passaram a entender o corpo.
À medida que o homens e as mulheres comuns puderem entender o sofrimento corporal, abriram-se as comportas de um fervor popular; a dor divina uniu-se às aflições humanas, e movimentos baseados na “Imitação de Cristo” renovaram a experiência da piedade pelo próximo, alterando as relações com a igreja e transformando os significados que as construções possuíam para esses cristãos urbanos.
    Stadt Luft Macht  Frei – “o ar da cidade torna o povo livre” – opunha-se à “Imitação de Cristo”. Nos espaços criados pela economia urbanas pessoas desfrutavam de uma liberdade de ação individual que não poderiam ter em nenhuma outra parte; nas locações religiosas, uns cuidavam dos outros. Essa grande tensão se tornou a marca da cidade moderna: de um lado, o desejo de se libertar dos compromissos comunitários em nome da liberdade pessoal; de outro, a vontade de encontrar um localonde todos possam com cada um.

O CORPO COMPASSIVO

    Desde o século XI, os construtores de igrejas procuravam talhá-las de forma que relacionasse os valores dos homens e os princípios do mundo, convidando quem observa a fazer parte da igreja. Tal identidade entre carne pedra se fortalecera à medida que os cristãos davam os primeiros passos para vincular o próprios sofrimentos com os de Jesus Cristo.
 Henri de Mondeville descobre a síncope

Henri de Mondeville era um cirurgião que trabalhava em Paris e descobriu uma reação que ocorria tanto nos órgãos humanos quanto nas pessoas. Ele notou que um órgão debilitado, durante ou depois de uma operação, era suplementado por outro, ou seja, “os outros membros se apiedavam do sofrimento dos membros feridos e prestavam socorro, mandando-lhes força e tepidez”. Dessa forma, era como se um membro tivesse misericórdia do outro, e o que sofre menos tivesse pena do mais aflito, enviando sangue imediatamente ao membro ferido. A essa reação, Mondeville deu o nome de síncope.
João de Salisbury, que viveu um século antes de De Mondeville, viveu em uma Europa menos segura, dessa forma, para Salisbury, a cidade era o espaço dos corpos vivos, e para De Mondeville, a cidade era o espaço que unia os corpos vivos. Ambos imaginaram uma analogia direta entre a estrutura urbana e a do corpo.

A COMUNIDADE CRISTÃ

Palácio, catedral e abadia

            A proteção militar perdeu sua característica prática de defesa, assumindo a feição de alegoria arquitetônica.
A paróquia era o espaço religioso mais importante. Mercados eram formados em torno das igrejas, que era a primeira fonte de amparo às pessoas em dificuldade. Com o crescimento da população, os guardiões paroquiais não puderam mais atender a essas necessidades locais e os religiosos de outras instituições tiveram de se encarregar de muitas das suas funções de caridade.

Confessor, esmoler e jardineiro

            No início da Idade Média, a confissão não era um ato “apaixonado”. Durante o século XII, devido à renovação religiosa ocorrida, a confissão assumiu um caráter mais pessoal e emotivo devido à troca de interrogações e confidências que estabelecia uma relação mais íntima entre o sacerdote e o pecador.
Embora o cristianismo enfatizasse a identificação com os pobres, a caridade não se fundamentava no sentimento de compaixão. O cristão purificava sua alma no serviço do próximo.
            Os jardins foram criados para aliviar a pressão demográfica que obstruía as ruas e as casas da cidade. Os parisienses viviam amontoados, a noção de privacidade era totalmente ignorada.

Trabalho cristão

            O jardim era como um paraíso reconquistado na terra. Trabalhar nele significava recuperar a dignidade. Ao fazer um esforço físico, a pessoa alcança um novo patamar na relação entre carne e alma. O jardim pretendia devolver à humanidade o seu estado de graça.

CAPÍTULO VI

“Cada Homem é o seu Próprio Demônio”

A Paris de Humbert de Romans

            A distinção entre espaço e lugar é fundamental na forma urbana. Enquanto o tempo e o lugar cristãos eram baseados na compaixão, o espaço e o tempo econômicos eram apoiados na agressividade.
ESPAÇO ECONÔMICO

CITÉ, BOURG, COMMUNE

Pertencente em sua maior parte ao rei e à Igreja, cercada de muralhas e dispondo do Sena como um fosso, conhecida pelos franceses como cité. O bourg era igualmente dotado de amplos e bem definidos direito, porém sem padrões. Embora populoso, todas as suas terras faziam parte dos bens de quatro igrejas que compunham a paróquia. As communes localizavam-se na periferia da cidade, apesar de sua alta densidade populacional, não possuíam muros de proteção nem suseranos.
Nos séculos XII e XIV, os reis Filipe Augusto e Carlos V ampliaram as muralhas que limitavam Paris, ao norte, sul e oeste. Assim a cidade expandiu-se para muito além da originalmente isolada e pequena cité, seus burgos e comunas, compensados estes pelos privilégios econômicos concedidos e garantidos pelo rei.
A etapa final da construção da Catedral de Notre-Dame permitiu um verdadeiro surto dos negócios de vidro, pedras preciosas e tapeçarias, pois o grande e repentino incremento da construção se tornou um fenômeno essencial no desenvolvimento da economia medieval.

A RUA

A desordem e a triste condição física da rua medieval resultavam do processo de crescimento. Os canais de comunicação entre as comunas, situadas na fronteira dos povoados, raramente se interligavam, e os burgos não eram planejados para se conectarem entre si. Nem o rei, nem o bispo, nem os burgueses faziam a mínima ideia do que fosse urbanismo. Em Paris, as autoridades invocavam o “eminente domínio”, principalmente quando queriam apropriar-se de uma área, para acrescentá-la a um palácio ou igreja.
Quando um construía o que quer que fosse, certo da impunidade; poucos encaminhavam contestações à justiça, ou recorriam a quadrilhas para derrubar o que fora edificado. Assim surgiu a malha urbana parisiense, “labirinto de vielas tortuosas e estreitas, becos e cortiços; a escassez de áreas livres ou edifícios recuados dificultava a visibilidade; o tráfego estava permanentemente obstruído”.
Ainda que, ao olho moderno possam parecer igualmente confusas, Cairo e Paris medievais contrastavam de forma impressionante. No Cairo, a propriedade de um maometano devia ser construída mantendo certa proporção, umas em relação às outras; não era permitido, por exemplo, bloquear a entrada do vizinho. A religião decretava o contexto da arquitetura, embora sem impor linearidade às ruas. Em contrapartida, nenhuma subordinação divina – ou real, ou nobre – obrigava os prédios da Paris medieval a tomar conhecimento mútuo. Janelas ou pavimentos obedeciam unicamente à vontade do dono; constantemente, bloqueava-se o acesso a outros prédios.
A rua constituía-se no resto de todos os exercícios de poder e reivindicações de direitos, nada tendo a ver com jardim, a “coexistência” ou o lugar criado para o trabalho comunitário. Porém, mesmo carecendo de todas essas características de lugar, possuía um espaço econômico e signos visuais que balizavam seu funcionamento.
O pátio medieval também acabou sendo atraído pela atividade econômica da rua. Funcionando como um local de exposição e oficina, seu acesso foi aos poucos sendo alargado, a fim de que se pudesse ver o que acontecia dentro dele. Essa mudança alterou o tempo da rua. Na cidade antiga, dependia-se da luz do dia; o comércio, na Paris medieval, ampliou seu horário, da aurora ao cair da tarde, de tal sorte que os consumidores podiam ir às compras depois de concluírem seus próprios afazeres. O balcão permanecia montado e o pátio aberto, desde que houvesse movimento nas ruas.
Por estimularem a competição econômica, as vias públicas se tornaram palco de demandas agressivas, reconhecidamente violentas. Os índices atuais de criminalidade não proporcionam nem a mais pálida ideia da viciosidade que as assolava, durante a Idade Média. Uma inferência plausível, a partir da existência de tantas milícias de aluguel e soldados entre as classes abastadas, é que a maior parte dos conflitos envolvesse pessoas pobres, digladiando-se entre si. A causa mais frequente é conhecida: o excesso de bebida.
A bebida esquentava o corpo e compensava a ausência de calefação, pois a lareira só surgiu no século XV; o vinho era usado também como narcótico, para anestesiar a dor. Nas cidades medievais, convivia-se com a brutalidade impulsiva: uma facada ou um soco no estômago, desferidos por um homem cego pela embriaguez, não tinham motivos determinados. Em face à competição econômica, constitui-se numa forma diferente e descontínua de agressão.
A violência verbal desempenhava um papel importante na concorrência. Geralmente contida nos seus próprios limites, isso não obstava os cobradores, indo de casa em casa, fazer ameaças terríveis aos devedores e suas famílias. Realmente, os poderes políticos e eclesiásticos que governavam a cidade não faziam nenhum esforço para coibir os comerciantes mais exaltados. Posto que a propriedade sofria poucos danos – e os índices de criminalidade o comprovam – reinava uma ordem efetiva, embora peculiar.
 A competição econômica não era colérica nem melancólica, o perfil das criaturas envolvidas por ela só se tornou mais nítido quando surgiram as feiras e os mercados, espaços sujeitos a um controle eficaz.

FEIRAS E MERCADOS


    Os mercadores transportavam as mercadorias adquiridas nas docas e pontes para as feiras, onde se realizavam negócios de maior vulto que nas ruas da cidade. Alguns artigos retornariam de lá e seriam revendidos, através da rota comercial, a outras localidades. Nos períodos de crise, predominavam os negócios pequenos e locais, o escambo substituindo as trocas por dinheiro, com pouca ou quase nenhuma participação de intermediários profissionais. Apesar de tais circunstâncias, as feiras estabeleceram os primeiros laços entre os mercados.
       As grandes feiras não se organizavam mais a céu aberto, mas em salões especialmente destinados ao comércio de diversos ramos ou especialidades, pátios coberto e aleias arcadas. Sua época coincidia com celebrações e feriados religiosos, o que aumentava mais ainda a clientela em potencial.
    Os parisienses presumiram que sua clientela, incluindo moradores de cidades mais distantes, aumentaria tanto, que a feira deveria permanecer em funcionamento o ano inteiro. As feiras se enfraqueciam apesar da economia promovida por elas crescer incessantemente. Esse mesmo crescimento econômico era responsável por fragilizar o comércio localizado e submetido a rígidos controles.
      Se analisarmos a frase “cada homem é um demônio para si”, interpretaremos do ponto de vista religioso e de um outro que é alheio à religião. A interpretação que primeiro nos vem à mente tem caráter religioso: o demônio da competição agressiva faz o homem insensível ao que possui de melhor, sua compaixão. Entretanto, uma explicação mais profana também é viável: a competição econômica descontrolada pode ser autodestrutiva. Demolindo instituições estáveis como a feira, o animal econômico ávido de lucros, de fato, arriscava-se a perder. Era só questão de tempo.

TEMPO ECONÔMICO
Guilda e corporação

      A guilda foi uma instituição de defesa contra as tendências autodestrutivas da economia. Tratava-se de uma federação de oficinas autônomas, cujos donos tomavam decisões e estabeleciam as exigências para a promoção dos homens que recebiam por jornada ou ajudantes alugados e aprendizes. Normalmente, os conflitos internos eram minimizados em virtude do interesse comum no bem-estar do ofício.
      Embora independentes, os ministros do rei interferiam no seu funcionamento através de estatutos elaborados e revisados por ministros que, no melhor, aconselhavam-se com os líderes das associações. Muitos desses estatutos continham regras comportamentais para a concorrência, procuravam criar um controle coletivo, padronizando a produção; eles especificavam a quantidade de material a ser usado na confecção dos artigos, seu peso e o que era mais importante: o preço.
O enfraquecimento dos controles sobre seus integrantes reduziu a importância das associações, transformadas em instituições veneráveis, ritualizadas e ostentatórias. Ser membro de uma guilda não conferia outro privilégio senão o de comparecer ricamente vestido a jantares que reuniam pessoas cobertas de anéis e insígnias, mas que eram vistas como ameaça à sobrevivência do comércio.
Outras corporações – as “universidades” – relacionavam-se a qualquer  grupo corporativo com status jurídico independente. Diferindo do feudo rural, que tinha caráter contratual permanente, e da guilda urbana, que deveria durar a vida toda, as universidades frequentemente renegociavam seus objetivos e sua própria localização, conforme as circunstâncias, constituindo-se em instrumentos econômicos capazes de aproveitar as oportunidades.

Tempo econômico e tempo cristão
Nas cidades, o tempo se tornou mercadoria, avaliada em horas de labor remuneradas por salários fixos. As guildas foram o berço dessa aferição; os contratos especificavam o salário correspondente ao período de trabalho, mais do que às peças concluídas, sistema que recompensava o trabalhador por lotes de produção.
Em se tratando do tempo cristão, todos os sinais significantes na vida de um cristão estavam colocados no relato da vida de Cristo. Quanto mais perto de Deus se estiver, mais claro se tornará o significado dos eventos, que de outro modo parecerão sem sentido ou meramente casuais. É preciso aproximar-se de Deus para que a seta do tempo indique com nitidez o rumo a seguir.

Homo economicus
O homo economicus vivia no espaço e não para o lugar. A corporação identificou tempo e espaço na sua estrutura flexível – permanente e mutável. As disputas de mercado poderiam ser consideradas tranquilas, em contraste com o esforço demandado por honra e glória tão exaltado pelo código da cavalaria medieval. A imprudência era inerente ao Homo economicus.

A MORTE DE ÍCARO

A manifestação dos dilemas geradores das tensões entre espaço e lugar está expressa em três pinturas, são elas:
·         A procissão do Calvário – Brueghel invoca a necessidade de compartilhar e reagir ao sofrimento, um tema nitidamente cristão.
http://duvida-metodica.blogspot.com.br/2012/06/um-filme-sobre-o-quadro-de-peter.html

·         Flagelação – a obra de Piero constrói um lugar urbano impregnado de sentido, uma concepção da Imitação de Cristo no ambiente urbano.
                                     http://es.wahooart.com/A55A04/w.nsf/Opra/BRUE-8LT4M5

·         Paisagem com a queda de Ícaro – no quadro, as pessoas não prestam atenção à morte estranha e terrível que ocorre no mar. Brueghel traz à lembrança, mais uma vez, a falta de compaixão do homem em relação ao seu semelhante.

Embora de maneira não programada, obviamente, a Paisagem com a queda de Ícaro sugere um alívio às tensões oriundas do apego ao lugar, geradas no mundo medieval; somos arremessados às contradições intemporais existentes entre beleza e horror. Trata-se apenas de uma imagem local a que foram negados eventos estranhos e presenças alheias. Uma negativa que exerceu sedução praticamente irresistível sobre as comunidades cristãs, que procuravam sobreviver em um mundo cada vez mais exótico.


O GUETO JUDEU NA VENEZA RENASCENTISTA

http://zivabdavid.blogspot.com.br/2012_02_01_archive.html


Richard Sennett cria uma relação entre a realidade da sociedade de Veneza e duas peças escritas pelo renomado romancista William Shakspeare: Sonho de uma noite de verão e O mercador de Veneza nos mostram a atual situação de judeus e imigrantes que viviam na cidade de Veneza  durante o renascimento.

A Pérola do Adriático, Croácia, era o ponto mais importante da Renascença, graças ao seu intercâmbio com a Europa, o Oriente e a África criando assim uma imagem imponente e luxuosa que quando situada nas histórias de Shakspeare pode ser observada em seu declínio.

Veneza, ao contrário da antiga Roma, não possuía nenhum poder territorial; os estrangeiros que iam e vinham não desfrutavam de privilégios, não eram membros de um império ou nação-Estado. Os imigrantes que ali habitavam não tinham cidadania oficial, vivendo permanentemente na ilegalidade.

Albaneses, turcos, gregos e alguns cristãos ocidentais, como os alemães, moravam enclausurados em suas residências ou em blocos de construções. Exatamente a partir dessas que exclusões sociais que podemos inserir a criação dos guetos judaicos e sua relação com a sociedade veneziana. Fechando os judeus nos guetos, os venezianos acreditavam estar isolados do mal que infectara a comunidade cristã. O medo da infecção por doenças venéreas resumia o contato entre cristão com judeus, onde antes se resumia em apertos de mão e beijos, em uma simples curvatura. “O gueto representava o compromisso entre uma necessidade prática, de caráter econômico, que eles entediam, e as aversões que despertavam, um medo físico” (Carne e Pedra, pág. 183).

A criação dos guetos acabou sendo de total importância para os acontecimentos que sucederam a trajetória da cidade de Veneza na história política e econômica mundial. Veneza já tinha perdido uma parcela importante de seus negócios em consequência de uma esmagadora derrota militar e as lideranças da cidade atribuíram esses fatos aos vícios sustentados por essa grande riqueza. “A segregação dos diferentes, que não mais poderiam ser tocados nem precisariam ser vistos, trariam a paz e a dignidade de volta” (Carne e Pedra, pág. 183).
Os guetos judeus sempre existiram. A Europa cristã sempre fez questão que eles não tivessem outra opção de moradia, em qualquer cidade que esse tipo de colônia procurasse abrido, eles seriam obrigados a viver separados. Em decorrência da grande desorganização da malha urbana, os judeus que deveriam viver separados do restante da população acabavam mais próximos do que se imagina. A solução pensada pelos venezianos foi transformar os belos canais que partiam das áreas centrais em grandes fossos quando encontrassem os guetos judaicos.
http://zivabdavid.blogspot.com.br/2012_02_01_archive.html

"Os judeus não podiam adquirir terra fora dos guetos, portanto durante períodos de crescimento populacional, os guetos ficavam estreitos, altos e as casas superpovoadas. Residentes tinham o seu sistema de justiça. Em volta do gueto haviam por vezes muros e durante o pogrom eram fechados desde o interior ou desde o exterior durante o Natal e Páscoa. Frequentemente, os residentes do gueto tinham de ter um passe para  poder dirigir a sítios fora do gueto."

(Autor desconhecido).

A segregação imposta pelos cristãos apenas contribuiu para aumentar a estranheza do cotidiano judeu, fazendo com que a rotina não cristã se tornasse algo enigmático aos olhos do poder dominante. Após viverem durante tantos anos em células solitárias que nesse momento a principal luta, antes da vontade de sobrepor os opressores, era de ter um lugar próprio onde eles pudessem ser judeus. A nova malha urbana imposta pela população de Veneza criou uma sociedade segregada que se fortalece na solidão.
Nos anos 1000, os venezianos já tinham dominado quase todo o mar Adriático, controlando a rota para Jerusalém e por consequência obtinham uma localização estratégica em relação as cruzadas em direção a terra santa que se iniciariam logo mais. Em 1200, Veneza já tinha contratos fortificados com o Oriente para a importação de especiarias, mercadoria de grande valor para a época. Os venezianos só não contavam que alguns séculos depois os portugueses descobrissem uma nova rota para o oriente, provocando um evidente declínio no monopólio de Veneza. “ Quando se deu início à construção dos guetos, as fortunas provenientes do comércio de especiarias estavam intimamente vinculadas às forças em jogo” (Carne e Pedra, Pag. 187).
A sensualidade identificava o veneziano aos olhos de toda a Europa, mas isso não durou muito tempo. Em dia de abundância e relaxamento, florescia um subcultura homossexual devotada ao travestismo.
Em meio a tanta sexualidade e prazeres da carne, os corpos judaicos pareciam abrigar uma vasta quantidade de doenças decorrentes de suas práticas religiosas. Os cristãos acabaram relacionando o grande surto de sífilis, propagado pelas prostitutas, à lepra e considerando tais doenças como DOENÇAS DO JUDAISMO.
Para combater essa onda de sensualidade que se observava em Veneza, foram criadas várias leis que regulamentavam tanto a vestimenta quanto os adereços que homens e mulheres poderiam usar. Entretanto o principal problema não era a propagação da sífilis e menos ainda a sensualidade presente na sociedade. A usura, que era a grande fonte de renda para os judeus, incomodava muito mais a população cristã da época. “A agiotagem, tal como era praticada em Veneza, desde o século XIII, consistia em emprestar dinheiro a taxas de 15 a 20%, menos do que se cobrava na Paris medieval” (Carne e Pedra, pag. 190).

O estudo do preconceito religioso não é um exercício de racionalidade.

O DESEJO DA PUREZA EXPRESSA OS MEDOS DE UMA SOCIEDADE; A AUTODEPRECIAÇÃO SENTIDA POR UM GRUPO PODE MIGRAR PARA OUTRO, QUE REPRESENTA O IMPURO”.
(Mary Douglas)

JUDEUS E CORTESÃS


   Há relatos de um bacanal realizado no Vaticano em 1501 organizado pelo duque de Valentino com a presença do papa Alexandre VI. Absurdo, não?! Entretanto, o papado era uma sociedade mundana, formada por funcionários graduados, nos quais nenhum deles fizera votos sagrados.
      Nesse contexto, entra a figura das cortesãs – garotas que entravam cedo na prostituição com o intuito de despertar paixão, atrair homens e dominá-los, para isso elas precisam aprender desde cedo, e diferentemente das gueixas que os rituais eram transmitidos de geração em geração, elas tinham que aprender o ofício sozinhas, observando as damas da corte, para vestir-se e se comportarem como elas, assim, elas se disfarçavam nos salões e poderiam circular entre as mulheres virtuosas tal como se fossem uma delas com mesmo modo de se apresentar. Em 1543 uma proclamação governamental afirmava que como não havia diferenças entre os trajes das prostitutas e das senhoras nobres e cidadãs, ninguém seria capaz de distinguir o “bom” do “ruim”.
      Veneza, por ser uma cidade portuária, movimentava um grande volume de dinheiro pela “indústria do sexo” durante a Renascença, uma vez que o cais era um ambiente que tolerava prostituição, integradas a sua economia (comércio - principalmente especiarias), da mesma forma que os banqueiros judeus, pois atraía uma clientela regular e constante.
     Dessa maneira, judeus e meretrizes foram segregados da sociedade, fazendo com que ambos utilizassem roupas e símbolos amarelos, uma vez que cada cidadão já vestia um uniforme característico de seu status ou profissão, porém a cor amarela identificava os grupos discriminados. Em 1543 um decreto definia como deveria ser a aparência de uma mulher virtuosa, nele continha, por exemplo, que nenhuma prostituta poderia usar ouro, prata ou seda, nem colares, pérolas ou argolas, nas suas orelhas ou em suas mãos.  Diane Hughes dizia que apenas um grupo de mulheres regularmente encontradas nas ruas do norte da Itália adornavam as orelhas com argolas - as judias, com isso, em alguns locais recebiam o tratamento idêntico ao das prostitutas, enquanto em outros se limitavam a interditar os adornos, pois os brincos também carregavam noções de impureza sexual, então, proibindo-os os venezianos reprimiam o corpo sexual para não mais distinguirem as mulheres impuras com quem encontravam.
http://literaturaecinema.blog.terra.com.br/2009/09/19/moca-com-brinco-de-perolas/
A ideia de confinamento dessas mulheres deu origem a estabelecimentos parecidos com bordéis administrados pelo Estado que calculavam até o valor das transações sexuais, mas elas preferiam trabalhar nas ruas em locais anônimos longe da vigilância do Estado, com isso foi determinada uma lei que proibia o trânsito delas ao longo do Grande Canal, o que não as impediu, elas apenas tiveram que gastar mais para se infiltrarem em outras regiões respeitáveis da cidade. Regras como maneiras de se vestir e se portar perante a sociedade também falharam.
Os judeus não ultrapassaram tantos limites legais, submeteram-se à norma de segregação (guetos) em troca de incolumidade, eram protegidos por barcos da policia principalmente na época da Quaresma e da Semana Santa contra massas cristãs açuladas pelas lembradas dos que tinham matado Jesus; pontes foram erguidas, janelas fechadas os tiravam do alcance da fúria cristã. Nos guetos eles tinham liberdade para construir suas sinagogas (transformando um lugar “maldito” em um lugar sagrado), unindo suas instituições na comunidade fechada ao abrigo de uma cidade-Estado cristã. Nesse espaço também, as mulheres desprezadas poderiam orgulhar-se de sua aparência, esse tipo de “ostentação” de riqueza se não fosse dentro do gueto, seria considerado uma grave provocação aos cristãos, atestando para eles a insaciedade dos judeus. Tal isolamento criava uma comunidade de oprimidos cada vez mais voltados para o seu interior.
 http://exegeseoriginal.blogspot.com.br/2012/05/o-que-o-mundo-deve-aos-judeus.html
O antissemitismo de Lutero no inicio do século XVII instruiu alguns cristãos e estendeu-se aos judeus, nesse contexto o judeu Leon Modena representava os judeus instruídos a participar da vida cultural além dos limites dos guetos, todavia, mantendo suas práticas religiosas. Porém, Modena apreciava a proteção das comunidades e incentivava as atividades em seu centro, pois imaginava que seus esforços poderiam aliviar a repressão, assim ganhou fama e começou a atrair cristãos para os guetos por voyeurismo, seduzidos pela cultura proibida. No entanto, na Veneza de 1629 a 1631 abalada por uma grande peste, Modena teve uma triste constatação: ele reconheceu não apenas o desdém dos cristãos para com os sofrimentos do seu povo que foi impedido de sair dos guetos para um lugar mais higiênico, mas também uma disposição de ataca-lo.
Foram criadas então diversas fantasias a respeito dos judeus. Em meados de 1630 eles haviam deixado de circular pelas ruas transformando suas culturas e atividades em enigmas para os cristãos, assim a circuncisão até então realizada passou a ser vista como uma prática secreta de automutilação, associada a hábitos sexuais sádicos, pois o corte do prepúcio estava relacionado à castração e afeminação, o escritor medieval Thomas de Cantimpre chegou a deduzir que os homens judeus menstruavam, fato “científico” esse confirmado por Franco da Piacenza no catálogo de “doenças judias”. A situação piorou em 1636 quando um grupo de receptores judeus levou para o gueto alguns objetos roubados, dessa maneira, todos os judeus passaram a ser vistos como criminosos, começando com roubo e outros delitos, até aprisionamento de crianças cristãs e orgias de circuncisões, como consequência, bandos cristãs invadiram guetos, queimando e roubando livros e objetos sagrados das sinagogas e ateando fogo na comunidade.
Por fim, a identidade do grupo mesmo que forjada pela opressão não liberta o opressor, e não nos deixa dúvidas do legado que a população judaica plantou e incorporou a paisagem e cultura de quem o humilhava: a comunidade cristã.

Nenhum comentário:

Postar um comentário