
Richard Sennett nasceu em Chicago no dia 1 de
janeiro de 1943. É
um sociólogo e historiador norte-americano, professor
da London School of Economics, do Massachusetts Institute of
Technology e da New York University. É
também romancista e músico.
Levado à sociologia por Hannah
Arendt, Sennett também reconhece a influência de Michel
Foucault sobre seu trabalho. A princípio interessado na vida
dos trabalhadores em meio urbano, aborda questões ligadas
à arquitetura.
Posteriormente
amplia seu campo de estudos, analisando a corrosão do caráter induzida pela
instabilidade profissional sob o capitalismo flexível. Baseia-se em
relatos de vida, notadamente de trabalhadores condenados à mobilidade, que não
lhes possibilita o estabelecimento de vínculos duráveis. Através do estudo da
cidade moderna, interessa-se por questões ligadas à sociabilidade e ao
trabalho, e particularmente, pela figura do exilado, cuja origem e
formação não podem ser compreendidas pelos outros.
Seus principais
interesses estão na área de desenvolvimento social e arquitetural de cidades,
mudanças no mundo do trabalho e sociologia da cultura.
CARNE E PEDRA - O CORPO E A
CIDADE NA CIVILIZAÇÃO OCIDENTA
Sennet estuda algumas cidades em momentos específicos de sua
evolução, que tenham marcado as experiências corporais e os espaços em que as
pessoas viviam ou transitavam.
O TEMPO NO CORPO
Os primeiros cristãos em Roma
Uma das passagens mais dramáticas da historia da igreja,teve origem na
critica feita por um cristão contra o mais personalista dos projetos
arquitetônicos,que era a construção de Antinópolis.
Antínoo era amigo do imperador Adriano,acreditava-se que Antínoo teria
se suicidado para salvar a vida do imperador que se encontrava enfermo.Naquela
época acreditava que uma pessoa através do suicídio poderia transferir sua
força vital para um ente querido,por essa
atitude Antínoo ele foi considerado um Deus para os romanos.No entanto,Orígenes
contestou esta “deusificação”,pois para ele Deus era considerado uma pessoa
sagrada,livre das leviandades humanas,dotado de poderes sobrenaturais,vida
eterna e jamais poderia ser comparado com uma pessoa humana.Sendo assim
Orígenes demoliu os poderes mágicos de Antínoo
e declarou que a fé em Deus não poderia ser decretada pelo estado,os
cristãos não tinham a quem dever qualquer obediência terrena.Quebrando assim o
elo política e religião e tornando os templos e monumentos invólucros e vazios.A
divisão entre política e fé manifestou-se a partir de uma concepção temporal
que marcou a crença cristã inicial.

http://www.historia.templodeapolo.net/civ.asp?civ=Civiliza%C3%A7%C3%A3o%20Romana#topo
A adoção dessa nova crença,fez com que os novos cristão mudassem seu
modo de pensar,para eles agora o corpo não pertencia mais as cidades e eles
estavam livres dessa servidão.Por isso eles passaram a vagar,desenraizados e
sem descanso,nômades.Mesmo que eles não saíssem pelo mundo a fora,deveria
deixar inteiramente de lado o apego ao
lugar onde se vive.Chegava ao fim a lealdade aos espaços físicos.
Além disso o novo cristão deveria se desapegar de tudo que se
considerava humano,ou seja,prazeres,deveria fazer renuncias corporais árduas e
não naturais,deveriam ir alem dos limites do prazer e da dor,ate não sentir
nada,perdendo as sensações,transcendendo ao desejo.
Passava-se também seguir a
doutrina de igualdade entre os seres humanos,as imagens e formas visuais
deixavam de ser importantes.
Tornava-se então necessário criar lugares
em que os cristãos pudessem fazer sua peregrinação.Os cultos se iniciaram em
pequenos centros do comercio do império,logo depois eles passaram a se
encontrar em recintos fechados,chamados de A Casa Cristã.Depois os fies
transferiram o culto para outras edificações ,mas todas elas sendo um espaço
domestico,entre quatro paredes,como modo de se proteger contra as agressões do
estado que proibia a pratica publica da religião.
Os cultos se iniciavam sempre na sala de
jantar.Na qual dividia-se a refeição,conversavam e rezavam,sem grandes
formalidades,tratando sempre todos os cristãos por igual.
AS PRIMEIRAS IGREJAS
Com a adesão do Cristianismo no império de Constantino, estabeleceu-se
uma forma de governo na igreja que prevalece até hoje: o bispo é o “pastor” que
guia os negócios cristãos da cidade. Assim, à medida que a religião “crescia”,
seu patrimônio aumentava e agora estava diretamente relacionada ao poder.
Com essa expansão, a imagem de Cristo, antes o Deus dos humildes, foi
alterada; a igreja passou a pertencer ao reino. Constantino, o imperador,
tornou-se vigário de Deus na terra, e Deus passou, cada vez mais a ser visto
como “imperador do céu”, cuja imponência era refletida nos prédios e
construções.
A BASÍLICA DE LATRÃO
“...nasceram no terreno que fazia parte daquilo que estava à livre
disposição do rei...”
A fé possuía uma hierarquia e isso era refletido no templo construído,
havia a segregação do espaço. Mas, em contrapartida a esse esplendor físico, os
fiéis tentaram preservar o compromisso com a fé voltando- se para o espaço da
experiência religiosa individual. O martirium
era um lugar especial para moldar a luz.
MARTIRIUM
DE SANTA CONSTANÇA
Trata- se de um espaço destinado `contemplação, à reflexão individual
sobre as vidas dos que sofrem pela fé.
A basílica e o martirium representavam
as duas faces do cristianismo: o Cristo Rei e o Cristo Salvador do martirizado
e do fraco. Expunham também a dificuldade de acomodação do cristianismo aos
espaços em que os cristãos viviam, Roma particularmente. A conversão da cidade
ocorreu quando o império ainda estava em declínio. Os pagãos estabeleceram
entre esses fatos uma relação de causa e efeito.
Quando a influência de religião cresceu, quebrou-se a harmonia entre sua
austeridade inicial e os espaços que ela ocupou. O poder exigia um ambiente
apropriado. Nesse sentido, o martirium representou
para a fé cristã uma redenção. Porque somente em alguns lugares, bem construídos,
com arte, no sentido da conversão seria perceptível, neles, o cristão
renunciava à carne, mas resgatava o valor da pedra.
Para o crítico Friedrich Nietzche, o desejo de transcender à carne e à
pedra era mera tática de poder. Baseado nisso, mostrou o cristianismo como uma
parábola onde figuram gaviões e cordeiros; respectivamente, romanos e cristãos.
Tudo resumindo-se em uma “caça à presa” na qual o cordeiro nãopoderia livrar-se
do gavião, pois a alma não pode renegar a necessidade de um lugar no mundo.
CAPÍTULO V
COMUNIDADE
“STADT LUFT MACHT FREI”
Numa época de miséria, a Idade
Média, a maior parte da população vivia no campo, e os grandes castelos
significavam segurança. Igualmente murados e com reservas de comidas, roupas e
mercadorias de luxo, asseguradas pela atividade mercantil, os centros urbanos
medievais começaram a se desenvolver.
Na Paris medieval, a Catedral de Notre-Dame ergueu-se testemunhando o
poder do cristianismo sobre o novo centro cultural. Embora o rei da França e o
bispo de Paris tenham brilhado no evento, representando o Estado e a Igreja, a
população celebrou muito mais o triunfo do trabalho manual, festejando
entalhadores, vidraceiros, tecelões e marceneiros, que haviam participado da
obra, bem como os banqueiros, que a financiaram. Uma terceira força de influência
– a economia - surgia.
Na realidade, pode-se dizer que a catedral foi o ponto culminante da
cadeia de eventos que se iniciaria nos mercados de peixes e grãos, às margens
do Sena. Graças ao crescimento dos negócios, massas de aprendizes haviam
migrado para Paris, de toda Europa.
“Sob influência do comércio, as antigas cidades romanas ganharam novo
alento, crescendo demograficamente; ; em outros casos, grupos mercantis
estabeleceram-se em torno de fortalezas, ao longo da costa, das margens do
rios, na confluência de rotas de comunicação. Assim é que se construíram os
mercados, cada qual exercendo atração proporcional a sua importância, nas
imediações ou mais distantes.” (Henri
Pirenne)
Assim como as aldeias e vilas medievais reviveram sob o abrigo do
cristianismo, as pedras das igrejas e catedrais expressavam a afeição passional
e eterna dos cristãos às cidades em que viviam, e quando eles careciam da
comunidade, ou ainda, o modo como passaram a entender o corpo.
À medida que o homens e as mulheres
comuns puderem entender o sofrimento corporal, abriram-se as comportas de um
fervor popular; a dor divina uniu-se às aflições humanas, e movimentos baseados
na “Imitação de Cristo” renovaram a experiência da piedade pelo próximo,
alterando as relações com a igreja e transformando os significados que as construções
possuíam para esses cristãos urbanos.
Stadt Luft Macht Frei – “o ar da
cidade torna o povo livre” – opunha-se à “Imitação de Cristo”. Nos espaços
criados pela economia urbanas pessoas desfrutavam de uma liberdade de ação
individual que não poderiam ter em nenhuma outra parte; nas locações religiosas,
uns cuidavam dos outros. Essa grande tensão se tornou a marca da cidade
moderna: de um lado, o desejo de se libertar dos compromissos comunitários em
nome da liberdade pessoal; de outro, a vontade de encontrar um localonde todos
possam com cada um.
O CORPO COMPASSIVO
Desde o século
XI, os construtores de igrejas procuravam talhá-las de forma que relacionasse
os valores dos homens e os princípios do mundo, convidando quem observa a fazer
parte da igreja. Tal identidade entre carne pedra se fortalecera à medida que
os cristãos davam os primeiros passos para vincular o próprios sofrimentos com
os de Jesus Cristo.
Henri de Mondeville descobre a síncope
Henri de Mondeville era um cirurgião que trabalhava
em Paris e descobriu uma reação que ocorria tanto nos órgãos humanos quanto nas
pessoas. Ele notou que um órgão debilitado, durante ou depois de uma operação,
era suplementado por outro, ou seja, “os outros membros se apiedavam do
sofrimento dos membros feridos e prestavam socorro, mandando-lhes força e
tepidez”. Dessa forma, era como se um membro tivesse misericórdia do outro, e o
que sofre menos tivesse pena do mais aflito, enviando sangue imediatamente ao
membro ferido. A essa reação, Mondeville deu o nome de síncope.
João de Salisbury, que viveu um século antes de De
Mondeville, viveu em uma Europa menos segura, dessa forma, para Salisbury, a
cidade era o espaço dos corpos vivos, e para De Mondeville, a cidade era o
espaço que unia os corpos vivos. Ambos imaginaram uma analogia direta entre a
estrutura urbana e a do corpo.
A COMUNIDADE CRISTÃ
Palácio, catedral e abadia
A proteção militar
perdeu sua característica prática de defesa, assumindo a feição de alegoria
arquitetônica.
A paróquia era o espaço religioso mais importante.
Mercados eram formados em torno das igrejas, que era a primeira fonte de amparo
às pessoas em dificuldade. Com o crescimento da população, os guardiões
paroquiais não puderam mais atender a essas necessidades locais e os religiosos
de outras instituições tiveram de se encarregar de muitas das suas funções de
caridade.
Confessor, esmoler e jardineiro
No início da Idade
Média, a confissão não era um ato “apaixonado”. Durante o século XII, devido à
renovação religiosa ocorrida, a confissão assumiu um caráter mais pessoal e
emotivo devido à troca de interrogações e confidências que estabelecia uma
relação mais íntima entre o sacerdote e o pecador.
Embora o cristianismo enfatizasse a identificação
com os pobres, a caridade não se fundamentava no sentimento de compaixão. O
cristão purificava sua alma no serviço do próximo.
Os jardins foram
criados para aliviar a pressão demográfica que obstruía as ruas e as casas da
cidade. Os parisienses viviam amontoados, a noção de privacidade era totalmente
ignorada.
Trabalho cristão
O jardim era como um
paraíso reconquistado na terra. Trabalhar nele significava recuperar a
dignidade. Ao fazer um esforço físico, a pessoa alcança um novo patamar na
relação entre carne e alma. O jardim pretendia devolver à humanidade o seu
estado de graça.
CAPÍTULO VI
“Cada Homem é o seu Próprio Demônio”
A Paris de Humbert de Romans
A distinção entre
espaço e lugar é fundamental na forma urbana. Enquanto o tempo e o lugar cristãos
eram baseados na compaixão, o espaço e o tempo econômicos eram apoiados na
agressividade.
ESPAÇO ECONÔMICO
CITÉ, BOURG, COMMUNE
Pertencente
em sua maior parte ao rei e à Igreja, cercada de muralhas e dispondo do Sena
como um fosso, conhecida pelos franceses como cité. O bourg era igualmente
dotado de amplos e bem definidos direito, porém sem padrões. Embora populoso,
todas as suas terras faziam parte dos bens de quatro igrejas que compunham a
paróquia. As communes localizavam-se na periferia da cidade, apesar de sua alta
densidade populacional, não possuíam muros de proteção nem suseranos.
Nos
séculos XII e XIV, os reis Filipe Augusto e Carlos V ampliaram as muralhas que
limitavam Paris, ao norte, sul e oeste. Assim a cidade expandiu-se para muito
além da originalmente isolada e pequena cité, seus burgos e comunas,
compensados estes pelos privilégios econômicos concedidos e garantidos pelo
rei.
A etapa
final da construção da Catedral de Notre-Dame permitiu um verdadeiro surto dos
negócios de vidro, pedras preciosas e tapeçarias, pois o grande e repentino
incremento da construção se tornou um fenômeno essencial no desenvolvimento da
economia medieval.
A RUA
A desordem
e a triste condição física da rua medieval resultavam do processo de
crescimento. Os canais de comunicação entre as comunas, situadas na fronteira
dos povoados, raramente se interligavam, e os burgos não eram planejados para
se conectarem entre si. Nem o rei, nem o bispo, nem os burgueses faziam a
mínima ideia do que fosse urbanismo. Em Paris, as autoridades invocavam o
“eminente domínio”, principalmente quando queriam apropriar-se de uma área,
para acrescentá-la a um palácio ou igreja.
Quando um
construía o que quer que fosse, certo da impunidade; poucos encaminhavam
contestações à justiça, ou recorriam a quadrilhas para derrubar o que fora
edificado. Assim surgiu a malha urbana parisiense, “labirinto de vielas
tortuosas e estreitas, becos e cortiços; a escassez de áreas livres ou
edifícios recuados dificultava a visibilidade; o tráfego estava permanentemente
obstruído”.
Ainda que,
ao olho moderno possam parecer igualmente confusas, Cairo e Paris medievais
contrastavam de forma impressionante. No Cairo, a propriedade de um maometano
devia ser construída mantendo certa proporção, umas em relação às outras; não
era permitido, por exemplo, bloquear a entrada do vizinho. A religião decretava
o contexto da arquitetura, embora sem impor linearidade às ruas. Em
contrapartida, nenhuma subordinação divina – ou real, ou nobre – obrigava os
prédios da Paris medieval a tomar conhecimento mútuo. Janelas ou pavimentos
obedeciam unicamente à vontade do dono; constantemente, bloqueava-se o acesso a
outros prédios.
A rua
constituía-se no resto de todos os exercícios de poder e reivindicações de
direitos, nada tendo a ver com jardim, a “coexistência” ou o lugar criado para
o trabalho comunitário. Porém, mesmo carecendo de todas essas características
de lugar, possuía um espaço econômico e signos visuais que balizavam seu
funcionamento.
O pátio
medieval também acabou sendo atraído pela atividade econômica da rua.
Funcionando como um local de exposição e oficina, seu acesso foi aos poucos
sendo alargado, a fim de que se pudesse ver o que acontecia dentro dele. Essa
mudança alterou o tempo da rua. Na cidade antiga, dependia-se da luz do dia; o
comércio, na Paris medieval, ampliou seu horário, da aurora ao cair da tarde,
de tal sorte que os consumidores podiam ir às compras depois de concluírem seus
próprios afazeres. O balcão permanecia montado e o pátio aberto, desde que
houvesse movimento nas ruas.
Por
estimularem a competição econômica, as vias públicas se tornaram palco de
demandas agressivas, reconhecidamente violentas. Os índices atuais de
criminalidade não proporcionam nem a mais pálida ideia da viciosidade que as
assolava, durante a Idade Média. Uma inferência plausível, a partir da
existência de tantas milícias de aluguel e soldados entre as classes abastadas,
é que a maior parte dos conflitos envolvesse pessoas pobres, digladiando-se
entre si. A causa mais frequente é conhecida: o excesso de bebida.
A bebida
esquentava o corpo e compensava a ausência de calefação, pois a lareira só
surgiu no século XV; o vinho era usado também como narcótico, para anestesiar a
dor. Nas cidades medievais, convivia-se com a brutalidade impulsiva: uma facada
ou um soco no estômago, desferidos por um homem cego pela embriaguez, não
tinham motivos determinados. Em face à competição econômica, constitui-se numa
forma diferente e descontínua de agressão.
A
violência verbal desempenhava um papel importante na concorrência. Geralmente
contida nos seus próprios limites, isso não obstava os cobradores, indo de casa
em casa, fazer ameaças terríveis aos devedores e suas famílias. Realmente, os
poderes políticos e eclesiásticos que governavam a cidade não faziam nenhum
esforço para coibir os comerciantes mais exaltados. Posto que a propriedade
sofria poucos danos – e os índices de criminalidade o comprovam – reinava uma
ordem efetiva, embora peculiar.
A competição econômica não era colérica nem
melancólica, o perfil das criaturas envolvidas por ela só se tornou mais nítido
quando surgiram as feiras e os mercados, espaços sujeitos a um controle eficaz.
FEIRAS E MERCADOS
Os
mercadores transportavam as mercadorias adquiridas nas docas e pontes para as
feiras, onde se realizavam negócios de maior vulto que nas ruas da cidade.
Alguns artigos retornariam de lá e seriam revendidos, através da rota
comercial, a outras localidades. Nos períodos de crise, predominavam os
negócios pequenos e locais, o escambo substituindo as trocas por dinheiro, com
pouca ou quase nenhuma participação de intermediários profissionais. Apesar de
tais circunstâncias, as feiras estabeleceram os primeiros laços entre os
mercados.
As
grandes feiras não se organizavam mais a céu aberto, mas em salões especialmente
destinados ao comércio de diversos ramos ou especialidades, pátios coberto e aleias
arcadas. Sua época coincidia com celebrações e feriados religiosos, o que
aumentava mais ainda a clientela em potencial.
Os
parisienses presumiram que sua clientela, incluindo moradores de cidades mais
distantes, aumentaria tanto, que a feira deveria permanecer em funcionamento o
ano inteiro. As feiras se enfraqueciam apesar da economia promovida por elas
crescer incessantemente. Esse mesmo crescimento econômico era responsável por
fragilizar o comércio localizado e submetido a rígidos controles.
Se
analisarmos a frase “cada homem é um demônio para si”, interpretaremos do ponto
de vista religioso e de um outro que é alheio à religião. A interpretação que
primeiro nos vem à mente tem caráter religioso: o demônio da competição
agressiva faz o homem insensível ao que possui de melhor, sua compaixão.
Entretanto, uma explicação mais profana também é viável: a competição econômica
descontrolada pode ser autodestrutiva. Demolindo instituições estáveis como a
feira, o animal econômico ávido de lucros, de fato, arriscava-se a perder. Era
só questão de tempo.
TEMPO
ECONÔMICO
Guilda e corporação
A
guilda foi uma instituição de defesa contra as tendências autodestrutivas da economia.
Tratava-se de uma federação de oficinas autônomas, cujos donos tomavam decisões
e estabeleciam as exigências para a promoção dos homens que recebiam por
jornada ou ajudantes alugados e aprendizes. Normalmente, os conflitos internos
eram minimizados em virtude do interesse comum no bem-estar do ofício.
Embora
independentes, os ministros do rei interferiam no seu funcionamento através de
estatutos elaborados e revisados por ministros que, no melhor, aconselhavam-se
com os líderes das associações. Muitos desses estatutos continham regras
comportamentais para a concorrência, procuravam criar um controle coletivo,
padronizando a produção; eles especificavam a quantidade de material a ser
usado na confecção dos artigos, seu peso e o que era mais importante: o preço.
O
enfraquecimento dos controles sobre seus integrantes reduziu a importância das
associações, transformadas em instituições veneráveis, ritualizadas e
ostentatórias. Ser membro de uma guilda não conferia outro privilégio senão o
de comparecer ricamente vestido a jantares que reuniam pessoas cobertas de
anéis e insígnias, mas que eram vistas como ameaça à sobrevivência do comércio.
Outras
corporações – as “universidades” – relacionavam-se a qualquer grupo corporativo com status jurídico independente.
Diferindo do feudo rural, que tinha caráter contratual permanente, e da guilda
urbana, que deveria durar a vida toda, as universidades frequentemente
renegociavam seus objetivos e sua própria localização, conforme as
circunstâncias, constituindo-se em instrumentos econômicos capazes de
aproveitar as oportunidades.
Tempo econômico e tempo cristão
Nas cidades, o tempo se tornou
mercadoria, avaliada em horas de labor remuneradas por salários fixos. As
guildas foram o berço dessa aferição; os contratos especificavam o salário
correspondente ao período de trabalho, mais do que às peças concluídas, sistema
que recompensava o trabalhador por lotes de produção.
Em se tratando do tempo cristão,
todos os sinais significantes na vida de um cristão estavam colocados no relato
da vida de Cristo. Quanto mais perto de Deus se estiver, mais claro se tornará
o significado dos eventos, que de outro modo parecerão sem sentido ou meramente
casuais. É preciso aproximar-se de Deus para que a seta do tempo indique com nitidez
o rumo a seguir.
Homo economicus
O homo economicus vivia no espaço
e não para o lugar. A corporação identificou tempo e espaço na sua estrutura
flexível – permanente e mutável. As disputas de mercado poderiam ser
consideradas tranquilas, em contraste com o esforço demandado por honra e
glória tão exaltado pelo código da cavalaria medieval. A imprudência era
inerente ao Homo economicus.
A MORTE DE ÍCARO
A
manifestação dos dilemas geradores das tensões entre espaço e lugar está
expressa em três pinturas, são elas:
·
A procissão do Calvário – Brueghel
invoca a necessidade de compartilhar e reagir ao sofrimento, um tema
nitidamente cristão.
http://duvida-metodica.blogspot.com.br/2012/06/um-filme-sobre-o-quadro-de-peter.html
·
Flagelação – a obra de Piero constrói
um lugar urbano impregnado de sentido, uma concepção da Imitação de Cristo no
ambiente urbano.
http://es.wahooart.com/A55A04/w.nsf/Opra/BRUE-8LT4M5
·
Paisagem com a queda de Ícaro – no
quadro, as pessoas não prestam atenção à morte estranha e terrível que ocorre
no mar. Brueghel traz à lembrança, mais uma vez, a falta de compaixão do homem
em relação ao seu semelhante.

Embora de
maneira não programada, obviamente, a Paisagem com a queda de Ícaro sugere um
alívio às tensões oriundas do apego ao lugar, geradas no mundo medieval; somos
arremessados às contradições intemporais existentes entre beleza e horror. Trata-se
apenas de uma imagem local a que foram negados eventos estranhos e presenças
alheias. Uma negativa que exerceu sedução praticamente irresistível sobre as
comunidades cristãs, que procuravam sobreviver em um mundo cada vez mais
exótico.
O GUETO JUDEU NA VENEZA RENASCENTISTA
http://zivabdavid.blogspot.com.br/2012_02_01_archive.html
Richard Sennett cria uma relação entre a realidade da
sociedade de Veneza e duas peças escritas pelo renomado romancista William Shakspeare:
Sonho de uma noite de verão e O mercador de Veneza nos mostram a atual
situação de judeus e imigrantes que viviam na cidade de Veneza durante o renascimento.
A Pérola do Adriático, Croácia, era o ponto mais importante
da Renascença, graças ao seu intercâmbio com a Europa, o Oriente e a África
criando assim uma imagem imponente e luxuosa que quando situada nas histórias
de Shakspeare pode ser observada em seu declínio.
Veneza, ao contrário da antiga Roma, não possuía nenhum
poder territorial; os estrangeiros que iam e vinham não desfrutavam de privilégios,
não eram membros de um império ou nação-Estado. Os imigrantes que ali habitavam
não tinham cidadania oficial, vivendo permanentemente na ilegalidade.
Albaneses, turcos, gregos e alguns cristãos ocidentais, como
os alemães, moravam enclausurados em suas residências ou em blocos de
construções. Exatamente a partir dessas que exclusões sociais que podemos
inserir a criação dos guetos judaicos e sua relação com a sociedade veneziana.
Fechando os judeus nos guetos, os venezianos acreditavam estar isolados do mal
que infectara a comunidade cristã. O medo da infecção por doenças venéreas
resumia o contato entre cristão com judeus, onde antes se resumia em apertos de
mão e beijos, em uma simples curvatura. “O
gueto representava o compromisso entre uma necessidade prática, de caráter econômico,
que eles entediam, e as aversões que despertavam, um medo físico” (Carne e
Pedra, pág. 183).
A criação dos guetos acabou sendo de total importância para
os acontecimentos que sucederam a trajetória da cidade de Veneza na história
política e econômica mundial. Veneza já tinha perdido uma parcela importante de
seus negócios em consequência de uma esmagadora derrota militar e as lideranças
da cidade atribuíram esses fatos aos vícios sustentados por essa grande
riqueza. “A segregação dos diferentes,
que não mais poderiam ser tocados nem precisariam ser vistos, trariam a paz e a
dignidade de volta” (Carne e Pedra, pág. 183).
Os guetos judeus sempre existiram. A Europa cristã sempre
fez questão que eles não tivessem outra opção de moradia, em qualquer cidade
que esse tipo de colônia procurasse abrido, eles seriam obrigados a viver
separados. Em decorrência da grande desorganização da malha urbana, os judeus
que deveriam viver separados do restante da população acabavam mais próximos do
que se imagina. A solução pensada pelos venezianos foi transformar os belos
canais que partiam das áreas centrais em grandes fossos quando encontrassem os
guetos judaicos.
http://zivabdavid.blogspot.com.br/2012_02_01_archive.html
"Os judeus não podiam adquirir terra fora dos guetos, portanto durante períodos de crescimento populacional, os guetos ficavam estreitos, altos e as casas superpovoadas. Residentes tinham o seu sistema de justiça. Em volta do gueto haviam por vezes muros e durante o pogrom eram fechados desde o interior ou desde o exterior durante o Natal e Páscoa. Frequentemente, os residentes do gueto tinham de ter um passe para poder dirigir a sítios fora do gueto."
(Autor desconhecido).
A segregação imposta pelos cristãos apenas contribuiu para
aumentar a estranheza do cotidiano judeu, fazendo com que a rotina não cristã se
tornasse algo enigmático aos olhos do poder dominante. Após viverem durante
tantos anos em células solitárias que nesse momento a principal luta, antes da
vontade de sobrepor os opressores, era de ter um lugar próprio onde eles
pudessem ser judeus. A nova malha urbana imposta pela população de Veneza criou
uma sociedade segregada que se fortalece na solidão.
Nos anos 1000, os venezianos já tinham dominado quase todo o
mar Adriático, controlando a rota para Jerusalém e por consequência obtinham
uma localização estratégica em relação as cruzadas em direção a terra santa que
se iniciariam logo mais. Em 1200, Veneza já tinha contratos fortificados com o
Oriente para a importação de especiarias, mercadoria de grande valor para a
época. Os venezianos só não contavam que alguns séculos depois os portugueses
descobrissem uma nova rota para o oriente, provocando um evidente declínio no monopólio
de Veneza. “ Quando se deu início à
construção dos guetos, as fortunas provenientes do comércio de especiarias
estavam intimamente vinculadas às forças em jogo” (Carne e Pedra, Pag. 187).
A sensualidade identificava o veneziano aos olhos de toda a
Europa, mas isso não durou muito tempo. Em dia de abundância e relaxamento,
florescia um subcultura homossexual devotada ao travestismo.
Em meio a tanta sexualidade e prazeres da carne, os corpos
judaicos pareciam abrigar uma vasta quantidade de doenças decorrentes de suas
práticas religiosas. Os cristãos acabaram relacionando o grande surto de sífilis,
propagado pelas prostitutas, à lepra e considerando tais doenças como DOENÇAS
DO JUDAISMO.
Para combater essa onda de sensualidade que se observava em Veneza,
foram criadas várias leis que regulamentavam tanto a vestimenta quanto os
adereços que homens e mulheres poderiam usar. Entretanto o principal problema
não era a propagação da sífilis e menos ainda a sensualidade presente na
sociedade. A usura, que era a grande fonte de renda para os judeus, incomodava
muito mais a população cristã da época. “A
agiotagem, tal como era praticada em Veneza, desde o século XIII, consistia em
emprestar dinheiro a taxas de 15 a 20%, menos do que se cobrava na Paris
medieval” (Carne e Pedra, pag. 190).
O estudo do preconceito religioso não é um exercício de
racionalidade.
“O DESEJO DA PUREZA
EXPRESSA OS MEDOS DE UMA SOCIEDADE; A AUTODEPRECIAÇÃO SENTIDA POR UM GRUPO PODE
MIGRAR PARA OUTRO, QUE REPRESENTA O IMPURO”.
(Mary Douglas)
JUDEUS E CORTESÃS
Há relatos
de um bacanal realizado no Vaticano em 1501 organizado pelo duque de Valentino
com a presença do papa Alexandre VI. Absurdo, não?! Entretanto, o papado era
uma sociedade mundana, formada por funcionários graduados, nos quais nenhum
deles fizera votos sagrados.
Nesse
contexto, entra a figura das cortesãs – garotas que entravam cedo na
prostituição com o intuito de despertar paixão, atrair homens e dominá-los,
para isso elas precisam aprender desde cedo, e diferentemente das gueixas que
os rituais eram transmitidos de geração em geração, elas tinham que aprender o
ofício sozinhas, observando as damas da corte, para vestir-se e se comportarem
como elas, assim, elas se disfarçavam nos salões e poderiam circular entre as
mulheres virtuosas tal como se fossem uma delas com mesmo modo de se
apresentar. Em 1543 uma proclamação governamental afirmava que como não havia
diferenças entre os trajes das prostitutas e das senhoras nobres e cidadãs, ninguém
seria capaz de distinguir o “bom” do “ruim”.
Veneza,
por ser uma cidade portuária, movimentava um grande volume de dinheiro pela
“indústria do sexo” durante a Renascença, uma vez que o cais era um ambiente
que tolerava prostituição, integradas a sua economia (comércio - principalmente
especiarias), da mesma forma que os banqueiros judeus, pois atraía uma
clientela regular e constante.
Dessa
maneira, judeus e meretrizes foram segregados da sociedade, fazendo com que
ambos utilizassem roupas e símbolos amarelos, uma vez que cada cidadão já
vestia um uniforme característico de seu status ou profissão, porém a cor
amarela identificava os grupos discriminados. Em 1543 um decreto definia como
deveria ser a aparência de uma mulher virtuosa, nele continha, por exemplo, que
nenhuma prostituta poderia usar ouro, prata ou seda, nem colares, pérolas ou
argolas, nas suas orelhas ou em suas mãos.
Diane Hughes dizia que apenas um grupo de mulheres regularmente
encontradas nas ruas do norte da Itália adornavam as orelhas com argolas - as
judias, com isso, em alguns locais recebiam o tratamento idêntico ao das
prostitutas, enquanto em outros se limitavam a interditar os adornos, pois os
brincos também carregavam noções de impureza sexual, então, proibindo-os os
venezianos reprimiam o corpo sexual para não mais distinguirem as mulheres
impuras com quem encontravam.

http://literaturaecinema.blog.terra.com.br/2009/09/19/moca-com-brinco-de-perolas/
A ideia de
confinamento dessas mulheres deu origem a estabelecimentos parecidos com
bordéis administrados pelo Estado que calculavam até o valor das transações
sexuais, mas elas preferiam trabalhar nas ruas em locais anônimos longe da
vigilância do Estado, com isso foi determinada uma lei que proibia o trânsito
delas ao longo do Grande Canal, o que não as impediu, elas apenas tiveram que
gastar mais para se infiltrarem em outras regiões respeitáveis da cidade.
Regras como maneiras de se vestir e se portar perante a sociedade também
falharam.
Os judeus
não ultrapassaram tantos limites legais, submeteram-se à norma de segregação
(guetos) em troca de incolumidade, eram protegidos por barcos da policia
principalmente na época da Quaresma e da Semana Santa contra massas cristãs
açuladas pelas lembradas dos que tinham matado Jesus; pontes foram erguidas,
janelas fechadas os tiravam do alcance da fúria cristã. Nos guetos eles tinham
liberdade para construir suas sinagogas (transformando um lugar “maldito” em um
lugar sagrado), unindo suas instituições na comunidade fechada ao abrigo de uma
cidade-Estado cristã. Nesse espaço também, as mulheres desprezadas poderiam
orgulhar-se de sua aparência, esse tipo de “ostentação” de riqueza se não fosse
dentro do gueto, seria considerado uma grave provocação aos cristãos, atestando
para eles a insaciedade dos judeus. Tal isolamento criava uma comunidade de
oprimidos cada vez mais voltados para o seu interior.
http://exegeseoriginal.blogspot.com.br/2012/05/o-que-o-mundo-deve-aos-judeus.html
O antissemitismo
de Lutero no inicio do século XVII instruiu alguns cristãos e estendeu-se aos
judeus, nesse contexto o judeu Leon Modena representava os judeus instruídos a
participar da vida cultural além dos limites dos guetos, todavia, mantendo suas
práticas religiosas. Porém, Modena apreciava a proteção das comunidades e
incentivava as atividades em seu centro, pois imaginava que seus esforços
poderiam aliviar a repressão, assim ganhou fama e começou a atrair cristãos
para os guetos por voyeurismo, seduzidos pela cultura proibida. No entanto, na
Veneza de 1629 a 1631 abalada por uma grande peste, Modena teve uma triste
constatação: ele reconheceu não apenas o desdém dos cristãos para com os
sofrimentos do seu povo que foi impedido de sair dos guetos para um lugar mais
higiênico, mas também uma disposição de ataca-lo.
Foram
criadas então diversas fantasias a respeito dos judeus. Em meados de 1630 eles
haviam deixado de circular pelas ruas transformando suas culturas e atividades
em enigmas para os cristãos, assim a circuncisão até então realizada passou a
ser vista como uma prática secreta de automutilação, associada a hábitos
sexuais sádicos, pois o corte do prepúcio estava relacionado à castração e
afeminação, o escritor medieval Thomas de Cantimpre chegou a deduzir que os
homens judeus menstruavam, fato “científico” esse confirmado por Franco da
Piacenza no catálogo de “doenças judias”. A situação piorou em 1636 quando um
grupo de receptores judeus levou para o gueto alguns objetos roubados, dessa
maneira, todos os judeus passaram a ser vistos como criminosos, começando com
roubo e outros delitos, até aprisionamento de crianças cristãs e orgias de
circuncisões, como consequência, bandos cristãs invadiram guetos, queimando e
roubando livros e objetos sagrados das sinagogas e ateando fogo na comunidade.
Por fim, a
identidade do grupo mesmo que forjada pela opressão não liberta o opressor, e
não nos deixa dúvidas do legado que a população judaica plantou e incorporou a
paisagem e cultura de quem o humilhava: a comunidade cristã.